O espetáculo das quadrilhas juninas em Campina Grande: tradição que resiste e encanta

Quando o mês de junho chega, o Nordeste inteiro se transforma. Cidades ganham cores, sons e sabores que aquecem o coração: o cheiro de milho cozido e pamonha se mistura ao das fogueiras, bandeirinhas tomam as praças e avenidas, e a sanfona, o triângulo e a zabumba ecoam por todos os cantos. No centro dessa explosão cultural, um símbolo se destaca: as quadrilhas juninas.

Quadrilha Moleka 100 Vergonha/Foto: Mahatma Gandhi Vieira 

Mais do que uma dança, as quadrilhas são verdadeiros espetáculos de arte popular. E em Campina Grande, cidade do “Maior São João do Mundo”, essa tradição pulsa com força.

Uma herança reinventada pelo povo

A origem da quadrilha junina remonta à Europa do século XVIII, com a “quadrille”, dança de salão praticada pela aristocracia. No Brasil, inicialmente elitizada, foi apropriada e transformada pelo povo. No Nordeste, especialmente, ganhou corpo, alma e sotaque: os trajes refinados deram lugar a roupas inspiradas na vida no campo, os passos formais se tornaram encenações populares, e a música de câmara virou forró, xote e baião.

Lima Filho/Foto: Divulgação

Essa reinvenção é, até hoje, marca das quadrilhas juninas. E em Campina Grande, segundo a ASQUAJU (Associação de Quadrilhas Juninas), o diferencial está no cuidado com cada detalhe: figurinos elaborados, cenários teatrais, coreografias complexas e temáticas criativas fazem de cada apresentação um espetáculo que emociona e surpreende. Para Lima Filho, presidente da ASQUAJU, “as quadrilhas daqui se destacam pelo conjunto da obra. Os espetáculos têm muito mais detalhes. É uma produção completa”, 

O símbolo maior da festa

Para a pesquisadora Elizabeth Christina de Andrade Lima, professora da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e referência em estudos sobre cultura popular, não há como falar em festa junina sem falar em quadrilha.

“As quadrilhas juninas são, sem dúvida, o grande ícone da festa junina. Outros elementos ajudam em sua composição, como as fogueiras, os balões, as bandeiras multicolores, mas nenhum possui a sua substância, peculiaridade e especificidade. Ela é, definitivamente, o seu grande símbolo”, afirma.

Quadrilha Moleka 100 Vergonha/Foto: Mahatma Gandhi Vieira

A pesquisadora lembra que as quadrilhas têm raízes profundas na história cultural da cidade. Em entrevista ao Mídia Legal, ela destaca marcos importantes como o surgimento da primeira quadrilha junina infantil, em 1964, no Colégio Stellita Cruz, e a criação do primeiro São João de rua, em 1971, na então Rua da Floresta, hoje Coronel João Lourenço Porto.

Elizabeth Christina/Foto: Arquivo Pessoal

“Foi a partir dessas iniciativas de figuras como Déa Cruz e Carmita Araújo que as quadrilhas tomaram as ruas. Nos anos 1970, elas floresceram por toda a cidade, como as das ruas Ouro Branco, no bairro da Palmeira, e da Getúlio Vargas, no centro. Essas ações ajudaram a transformar Campina Grande na potência cultural que conhecemos hoje”, explica.

Quadrilha como espaço de formação

Mas nem só de festa vive a quadrilha. Por trás do brilho no palco, há histórias de transformação social, especialmente entre os jovens. Participar de um grupo junino, muitas vezes, é a primeira experiência coletiva e artística de crianças e adolescentes das comunidades. Lima Filho, destaca que “o impacto é imensurável. Muda comportamento, desenvolve a capacidade de trabalhar em grupo, de cumprir horários, e ainda permite que cada um descubra seus talentos”.

Lima Filho (Presidente da ASQUAJU), Mahatma Gandhi Vieira (Presidente da Quadrilha Moleka 100 Vergonha) e Janderson Oliveira Lima (Presidente da Quadrilha Arraial em Paris)/Foto: Divulgação

E complementa: “Hoje, já temos até uma escola de formação de profissionais: a Fábrica Junina.”

Essa dimensão educativa das quadrilhas é muitas vezes ignorada por quem vê apenas o lado festivo da tradição. Mas para centenas de jovens, é também uma porta de entrada para a arte, a cultura e até o mercado de trabalho, envolvendo áreas como figurino, cenografia, iluminação, música e produção de eventos.

Os bastidores de um espetáculo coletivo

O sucesso dos espetáculos, no entanto, esconde desafios reais. Quase todas as quadrilhas de Campina Grande são formadas por moradores de bairros e comunidades periféricas. E manter um grupo ativo exige mais do que paixão: é preciso driblar a escassez de recursos financeiros e, principalmente, de pessoas dispostas a se comprometer.

“Nosso maior desafio hoje é o material humano. Muitos jovens não querem mais saber de cultura popular. Reunir um grupo virou um verdadeiro garimpo”, afirma o presidente da ASQUAJU.

Quadrilha Moleka 100 Vergonha/Foto: Mahatma Gandhi Vieira

Além disso, os custos de figurino, transporte, alimentação e estrutura técnica pesam. Embora a associação consiga alguns convênios e apoios, especialmente durante o período do São João, a luta por reconhecimento e financiamento é permanente.

A responsabilidade dentro do “Maior São João do Mundo”

Campina Grande ostenta com orgulho o título de sede do “Maior São João do Mundo”, e as quadrilhas juninas são parte essencial desse título. Mas esse protagonismo cobra seu preço: ao contrário de outras cidades, onde os grupos apenas se apresentam, aqui as quadrilhas precisam atender a exigências institucionais, como cumprir metas de dezenas de apresentações durante os festejos.

Quadrilha Moleka 100 Vergonha/Foto: Mahatma Gandhi Vieira

“A responsabilidade aqui é maior. Precisamos entregar de 50 a 70 apresentações por edição. E tudo isso com recursos limitados”, explica Lima Filho.

Mais do que tradição: uma escolha de resistência

Manter viva a cultura junina é, hoje, uma escolha de resistência. Em um cenário de desvalorização crescente da cultura popular e do afastamento de parte da juventude, as quadrilhas seguem dançando, não apenas por festa, mas por memória, pertencimento e futuro.

Quadrilha Moleka 100 Vergonha/Foto: Mahatma Gandhi Vieira

Como ressalta a pesquisadora Elizabeth Christina de Andrade Lima, a quadrilha não apenas participa da festa junina, ela a estrutura e dá sentido: “seja onde for comemorado o evento junino, sempre uma quadrilha estará se apresentando e marcando sua presença.”

A quadrilha é, assim, expressão viva de um povo que, ao ocupar o palco com arte, emoção e memória, transforma cultura em resistência e tradição em espetáculo.


Reportagem: Shayelle Oliveira e Mídia Legal.
Edição de texto: Mídia Legal

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